Dr. João Borzino não é apenas um clínico. Não é apenas terapeuta. E certamente não é apenas músico. Ele é um pouco de tudo isso — e, talvez mais importante, é o elo entre esses mundos. Com uma trajetória que começou entre partituras de piano clássico, fascínio por órgãos do corpo humano e uma escuta emocional rara, Borzino hoje dedica a vida à saúde mental de pessoas em alta performance, diagnosticadas com TDAH, ansiedade e outros transtornos modernos que silenciosamente corroem o potencial humano.
“Eu sou um instrumento”, diz, com a serenidade de quem toca mais do que notas — toca pessoas. Nesta conversa com a Backstage, ele revisita sua história desde os primeiros anos, passando pelas escolhas que o levaram da música à medicina, até chegar ao lugar onde habita hoje: o ponto exato onde som e psique se encontram.
Da infância sensível ao palco escolar
Desde muito cedo, João Borzino carregava dois impulsos que pareciam opostos, mas logo se mostrariam complementares. Um era o fascínio quase biológico pelo funcionamento da vida — o corpo humano, os órgãos, os sistemas, os mistérios por trás dos seres vivos. O outro era uma necessidade intensa de expressar sentimentos e interpretar os dos outros, especialmente por meio da música.
“Eu era uma criança muito ligada nos detalhes dos outros. Sentia o ambiente, sentia as emoções e ficava buscando uma forma de traduzir aquilo”, conta. O interesse por biologia e comportamento caminhava lado a lado com uma sensibilidade artística cada vez mais evidente.
Foi na escola que esses elementos começaram a ganhar forma prática. Ainda pequeno, iniciou-se no piano clássico, mergulhando em estudos rígidos que o atraíam tanto pelo som quanto pela estrutura. Mais tarde, o baixo elétrico e a vida em banda trouxeram o improviso, a criação coletiva, o espaço da troca.
“A música era meu jeito de processar as coisas. Enquanto o estudo do corpo me explicava o que se via, a música explicava o que se sentia.”
Entre jalecos e amplificadores
Apesar do envolvimento profundo com a música, Borzino sentiu o chamado da clínica ainda jovem. A escuta, que já era afinada no campo sonoro, se ampliou para o campo humano. “Fazer medicina foi uma escolha que fez sentido para quem sempre quis entender o que está por trás do que se vê.”
Durante a faculdade de medicina, a música voltou a se apresentar como ponte — entre pessoas, emoções e alívio. Participou de bandas formadas por colegas do curso, o que se tornou mais do que uma diversão: foi um espaço de integração e de compreensão profunda da condição médica. “Ali, entre ensaios e rodas de som, comecei a entender como nós, médicos, também precisávamos da música como forma de acolhimento, de autorremédio. Era o lugar onde a gente podia respirar no meio da pressão acadêmica e do peso emocional da formação.”
Esse olhar sensível o levou, logo no início da carreira, a participar do programa de interiorização em saúde, atuando no Maranhão e no Amazonas. O que encontrou por lá foi mais do que escassez de recursos — foi um mergulho direto no sofrimento humano. “Foi ali que eu vi a miséria de perto. A ausência não só de estrutura médica, mas de cuidado psicológico, de espaço pra escuta. Aquilo moldou profundamente minha visão: a de um médico que cuida de corpos, sim, mas que entende que o sofrimento da alma é o que adoece primeiro.”
Mais do que técnica ou currículo, o que se formava ali era uma visão profundamente humanista. Para Borzino, cuidar é enxergar o ser por inteiro — não fragmentado por gênero, classe ou diagnóstico. “Sempre fiz questão de olhar para o humano, seja homem ou mulher, corpo ou mente, dor visível ou silenciosa. O sofrimento não escolhe um só lugar. E a cura também não pode escolher.”
Alta performance, dor invisível
Com o tempo, o Dr. João Borzino percebeu que a escuta que vinha da música e a visão clínica construída no contato com realidades extremas tinham algo em comum: ambas revelavam o que está por trás da aparência. E foi aí que sua atenção se voltou para um grupo específico de pacientes — pessoas de alta performance.
“Eu sei quem são esses indivíduos porque, de certa forma, eu sou um deles. Eu conheço a dor de quem tem potência, mas não encontra direção. De quem realiza muito, mas vive em desequilíbrio. E isso não é luxo emocional — é sofrimento real.”
Os pacientes que o procuram são executivos, artistas, empreendedores, atletas, criadores. Gente com ritmo acelerado, com entregas impressionantes, mas que tropeça em aspectos fundamentais da vida: organização pessoal, foco sustentável, criatividade instável, relações conturbadas. “A alta performance tem seu brilho, mas também tem suas sombras. E uma delas é essa dificuldade de sustentar vínculos, principalmente os vínculos íntimos, como no casamento. Muita gente cresce profissionalmente e encolhe emocionalmente.”
A identificação não é teoria. É vivência. Borzino sabe o que significa lidar com autoestima, com exigência interna, com as pausas que nunca vêm. “Esses pacientes me reconhecem porque eu também sei o que é isso. Sei o que é entregar muito e, mesmo assim, sentir que está falhando onde mais importa.”
Para ele, a terapia nesse contexto precisa de precisão, mas também de afeto. É um trabalho de afinar forças, reorganizar prioridades e, muitas vezes, reaprender o que parece simples: como estar em um relacionamento de verdade. “Força sem direção não transforma. Só desgasta. E a maioria chega até mim nesse ponto: travados, cansados, confusos, com a vida amorosa implodindo.”
Um instrumento que escolheu servir
Hoje, Dr. João Borzino caminha com clareza sobre o papel que escolheu ocupar. Não o do herói, nem o do técnico distante. Mas o do guia que entende o território porque já passou por ele. Um profissional que escuta com o ouvido treinado pela música, com o olhar lapidado pela clínica, e com o corpo presente na vida de quem precisa reorganizar o que parece impossível de arrumar.
“Eu sou um instrumento. E escolhi me afinar com o que a vida me deu: sensibilidade, conhecimento, prática, falhas, música, dor e propósito. Tudo isso faz parte de quem eu sou como terapeuta.”
A cada paciente, ele reafirma que saúde mental não é luxo, não é moda, não é vaidade. É estrutura. É o que sustenta todas as outras áreas da vida — inclusive o amor, a criatividade, o trabalho, a ambição. E é nesse ponto de interseção entre mente e sentido que ele atua, dia após dia.
Seu consultório é o palco onde os discursos de performance se transformam em conversas honestas. Onde a potência deixa de ser cobrança e vira escolha. E onde, muitas vezes, o silêncio vale mais do que qualquer fórmula.
Pingue-pongue Backstage com Dr. João Borzino
- Um disco que marcou sua vida: “Stormbringer”, Deep Perple .
- Um livro de cabeceira: “Kluge, a construção desordenada da mente humana”, Gary Marcus.
- Um hábito que preserva sua sanidade: Ouvir música.
- Uma frase que te guia: “Menos é mais — inclusive no pensar.”
- Saúde mental em uma palavra: Funcionalidade.
- Música em uma só palavra: Verdade.
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